terça-feira, 10 de maio de 2011

não há motivo para te importunar a meio da noite

não há motivo para te importunar a meio da noite
como não há leite no frigorífico
nem um limite traçado para a solidão doméstica.



tudo desaparece.
nada desaparece.
tudo desaparece antes de ser dito
e tu queres dormir descansada.


tens direito a um subsídio de paz.


se eu escrever um poema
esse não é para te importunar.


eu escrevo muitos poemas
e tu trabalhas de manhã cedo.


toda a gente sabe
que a noite é longa.
não tenho o direito de telefonar
para te dizer isso.


apesar dessa evidência
me matar agora.
e morro.
mas não morro.


se morresse, perguntavas:
porque não me telefonaste?
se telefonasse, perguntavas:
sabes que horas são?
ou não atendias.


e eu ficava aqui.
com a noite ainda mais comprida,
com a insónia.


com as palavras
a despegarem-se dos pesadelos.


José Luís Peixoto, in Gaveta de Papéis

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