terça-feira, 15 de junho de 2010

A criança de peixoto

Enquanto não encontro a obra completa (esgotada em todo o lado!?), deixo aqui um poema desse livro que se adivinha magnífico, na esperança de que seja brevemente reeditado

vejo na minha caligrafia as escadas do meu destino.

vejo na minha caligrafia as escadas do meu destino.
aquela casa tão grande com um quintal de galinhas
a morrerem ciclicamente. as malvas entristecidas
em canteiros já sem esperança. e em cada estrofe de
estar sentado perante a paisagem, o poema único e final.
as mulheres arrastam as tardes pelos versos, como
lembranças a arder em todas as noites da minha vida.
quem pode esquecer as tardes, se os ramos das laranjeiras
eram inesquecíveis? cada palavra possui um palmo desse
quintal infinito.

a fruteira sobre a mesa da cozinha é sangue no poema.
o meu destino emparedou-se, e um destino é para sempre.
as minhas mãos estendidas são atravessadas pela luz
que mostra no ar a dança do pó. respondo tantas coisas aos
talheres guardados na gaveta.

chegam as vozes que nunca partiram. chegam os rostos
que sonho quando acordo de repente a chorar. agora,
és o homem da casa, disseram-me. e já não havia casa.

a mãe passa um ano, como as crianças que ainda brincam
numa rua imaginária passam as horas. mãe inocente
e humilhada pelo céu e pelas estrelas, pelos cães a ladrarem
ao longe, pelas mulheres a caiarem paredes, pelos sinos
que nos chamam e pela estrada do cemitério. mãe,
vida multiplicada, como se o teu corpo se rasgasse e a carne
fosse a terra e as palavras, e os ossos fossem os ramos das
laranjeiras e as palavras.

José Luís Peixoto in A criança em ruínas

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