não há motivo para te importunar a meio da noite
como não há leite no frigoríficonem um limite traçado para a solidão doméstica.
tudo desaparece.
nada desaparece.tudo desaparece antes de ser dito
e tu queres dormir descansada.
tens direito a um subsídio de paz.
se eu escrever um poema
esse não é para te importunar.
eu escrevo muitos poemas
e tu trabalhas de manhã cedo.
toda a gente sabe
que a noite é longa.
não tenho o direito de telefonar
para te dizer isso.
apesar dessa evidência
me matar agora.
e morro.
mas não morro.
se morresse, perguntavas:
porque não me telefonaste?
se telefonasse, perguntavas:sabes que horas são?
ou não atendias.
e eu ficava aqui.
com a noite ainda mais comprida,
com a insónia.
com as palavras
a despegarem-se dos pesadelos.
José Luís Peixoto, in Gaveta de Papéis
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